Desastres no Trânsito

Preocupado com índices econômicos, superávit primário, taxas de juros e metas de inflação, que garantem nossa ascensão à sexta economia do mundo, o governo brasileiro parece não se dar conta da tragédia que impera nas nossas ruas. Como só viaja de avião, a burocracia estatal é incapaz de compreender a tragédia das estradas, pontilhadas por cruzes, e se restringe a apresentar a contabilidade fúnebre após as festas de fim de ano, carnaval e feriados prolongados, como se isso ajudasse ou confortasse as famílias das vítimas. O governo atribui a ocorrência dos desastres apenas à irresponsabilidade dos motoristas, e se limita a aumentar o infortúnio no inventário nefasto. Convenientemente desconsidera sua responsabilidade na habilitação de motoristas, no estado precário das estradas e na fiscalização do trânsito. Submetido à barganha política de quinta categoria, o órgão nacional de trânsito, o Denatran, tem na inépcia sua expressão máxima. O corolário do descaso não poderia ser outro: em 2010 batemos o recorde de mortes no trânsito e em 2011 superaremos essa marca sem qualquer dificuldade.

“O mais escandaloso do escândalo é que nos acostumamos a ele”. – Simone Beauvoir

Acreditando na metamorfose da tragédia em estatística, governo e sociedade parecem se unir em torno do lema do ditador soviético Joseph Stálin que “a morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística”. Essa parece ser a única explicação plausível para não nos darmos conta de que nos últimos trinta anos um milhão de pessoas morreram no nosso trânsito e 20 milhões ficaram feridas. Nesse período, cinco milhões de brasileiros foram para cadeiras de rodas ou ficaram com lesões irreversíveis. Por incrível que possa parecer, o custo de um trilhão de reais dos desastres de trânsito não está contabilizado nos índices econômicos.

Países desenvolvidos tratam o trânsito com seriedade. Em 1966, o presidente Lyndon Johnson foi alertado sobre a mortandade no trânsito do seu país. “Mais de 1.500.000 de nossos cidadãos morreram em nossas ruas e estradas neste século; cerca de três vezes o número de americanos que perdemos em todas as nossas guerras”, disse ao assinar o “Plano de Segurança no Trânsito”. Em 2010, os Estados Unidos tiveram o menor número de mortos no trânsito desde 1949. A Bélgica, outro exemplo, multiplicou por dez sua frota de veículos automotores nos últimos 60 anos, mas em 2010 teve o menor número de vítimas de trânsito de sua história. Esses países fazem diagnósticos dos problemas, realizam pesquisas em profundidade, estabelecem metas e promovem ações para reduzir a violência no trânsito. Os programas desses governos são robustos, há comprometimento das autoridades e efetiva participação da sociedade.

No Brasil, temos um longo caminho a percorrer. Em muitos aspectos parece que estamos na idade da pedra. Nossas estatísticas de trânsito deixam muito a desejar. Relegadas a um plano secundário, as perícias, essenciais para estabelecer medidas preventivas, são feitas à matroca. Sem perícias criteriosas as demandas judiciais dos desastres de trânsito não prosperam. A Justiça, de outra parte, tem mostrado excessiva benevolência com os motoristas infratores, promovendo a terrível impunidade, que anda de mãos dadas com a irresponsabilidade e o risco. Construídas com tecnologia dos anos 1950, nossas estradas são perigosas, incompatíveis com os tempos atuais. Quando se modernizam para os carros, nossas cidades espremem pedestres e ciclistas entre o muro e a morte. Milhões são gastos em viadutos enquanto passagens para pedestres, calçadas e ciclovias enfrentam a intransponível má vontade burocrática. Mal equipados e sem treinamento, os agentes de trânsito não conseguem conferir à fiscalização uma eficiência mínima. Para completar a patogenia, boa parte dos nossos veículos circulam sem manutenção à espera de mais vítimas.

É preciso dar um basta! Todos os dias milhares de brasileiros são feridos ou tem a vida precocemente interrompida por desastres de trânsito. Não podemos mais esperar. Medidas como uso do cinto de segurança, controle de velocidade em áreas urbanas, aperfeiçoamento da fiscalização, inspeção de segurança dos veículos, educação de trânsito para pedestres e ciclistas, que demandam poucos recursos e tem grande impacto na redução do número de vítimas, podem ser o começo da virada.

Temos que encarar essa empreitada. Chega de contar mortos e transformá-los em estatísticas, para tentar esmaecer a face cruel do nosso trânsito. Os belos índices econômicos não conseguem camuflar a procissão de cadáveres e mutilados nas ruas, ou estancar o choro das famílias enlutadas. Chega de inação, de indiferença, de insensibilidade. Basta!

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