Transporte público

Há pouco tempo o governo oferecia crédito e reduzia os impostos para que as pessoas quisessem comprar carros. Apostava suas fichas na solução individual para a mobilidade. Depois que a população de São Paulo disse um retumbante “não” ao aumento de vinte centavos nas passagens de ônibus e os protestos se alastraram pelas ruas do país, o governo agora caminha na direção oposta. Segundo o Correio Braziliense, o Senado quer urgência para o projeto de passe livre para estudantes, o Governo Federal coloca à disposição 50 bilhões de reais para solucionar problemas da mobilidade urbana, os governos estaduais e municipais se apressam em voltar atrás nos aumentos, reduzir o preço das passagens ou oferecer benefícios para o uso do transporte público.

O sistema de transporte – esse monumento à negligência com a população -, é deficiente em todas as cidades brasileiras e precário na maioria delas. Faltam ao sistema pontualidade, segurança, conforto, frequência, acessibilidade, tarifa justa e competitiva com os outros modos de transporte.

O sofrimento dos passageiros começa antes de entrar no ônibus. Geralmente as paradas não têm abrigo, se resumem a uma singela placa. Desprotegidos, sofrem com o bafo de óleo diesel, rufadas de poeira, substituídas por banhos de lama em época de chuva. Depois de escalar os degraus de acesso do ônibus, entram num veículo sujo, barulhento, abarrotado. Os motoristas mal treinados e ruas esburacadas, submetem os passageiros durante horas a um chacoalhar inclemente. Essa é a realidade de milhões de trabalhadores que ficam horas todos os dias nesse ir e vir fatídico. À guisa de exemplo, uma pessoa que leve duas horas por dia no trajeto entre a casa e o trabalho, ao final do ano terá ficado tempo correspondente a um mês dentro do ônibus.

A incompetência da gestão governamental está na base do caos no sistema de transporte. As concessões são muitas vezes feitas em conluio com empresários que financiam as campanhas de políticos igualmente inescrupulosos e submetem a população a viagens que quanto mais maltratam, mais lucro conferem ao dono da empresa.

A situação atual é insustentável. É preciso melhorar rapidamente, mas sem açodamento. A corrupção é inaceitável, mas distribuir gratuidades é também pernicioso. Os salários, combustível, depreciação dos veículos, manutenção, garagens, remuneração do capital, e a operação dos veículos têm um custo. Alguém tem de pagar, “não existe almoço grátis”. Alguém paga por quem não paga.

No calor das manifestações, os governantes estão tomando decisões apressadas para dar respostas às ruas. Além das concessões feitas à sorrelfa, alguns governantes estão propondo medidas populistas de ocasião, sem avaliar as consequências. As cidades precisam de planos de mobilidade para décadas. O Brasil tem excelentes técnicos que devem ser consultados para ajudar no equacionamento e solução dos problemas de transporte. Infelizmente, a maioria deles tem ficado à margem das discussões.

É possível ter um transporte digno e a preço justo, como na maioria das cidades da Europa, por exemplo. Um sistema de transporte deve contar com trens subterrâneos (metrô) ou de superfície (VLT), ônibus, táxis, bicicletas, e, por que não?, automóveis particulares. Com uma política de transporte adequada, esses veículos não são mutuamente excludentes, pelo contrário, são complementares. A infraestrutura (vias, trilhos, calçadas, ciclovias, pontos de ônibus) demanda tempo para ser implantada. Como é para durar muito tempo, não apenas até a próxima eleição, precisa ser bem-feita.

A pletora de exemplos de desperdício, incompetência e má gestão estão por toda parte. Enquanto a presidente anunciava mais recursos para mobilidade, o programa do Ministério das Cidades Mobilidade Urbana –Grandes Cidades, lançado em 2012, praticamente não saiu do papel: menos de 7% dos R$ 10,2 bilhões à disposição foram contratados. No Distrito Federal, a população espera há mais de dois anos os novos ônibus e o projeto do VLT, que já consumiu volumosos recursos, parece ter sido abandonado.

Não se pode negar: a relação entre o poder público e os cidadãos no Brasil é de opressão, descaso e desrespeito.

O governo não tem plano, parece não entender as demandas e necessidades da população. Ofereceu carro, a população pediu ônibus. Em um país decente, o transporte público é para todos, não apenas para pobres. É ainda mais preocupante quando Leila Saraiva, uma garota de 25 anos do Movimento Passe Livre, depois de sair de uma reunião com a Presidente da República, constata “um despreparo gigantesco do governo” para tratar de mobilidade urbana. Essa é a percepção de todos.

Presente de grego

“Carro fica 10% mais barato a partir de hoje”. A notícia parece boa, mas é na verdade um presente de grego.

Incapaz de dar solução sustentável para os problemas da mobilidade urbana, o Governo Federal aposta na pior das opções: o carro. O sistema de transporte – esse monumento à negligência com a população -, é deficiente em todas as cidades brasileiras e precário na maioria delas.

Faltam ao sistema pontualidade, segurança, conforto, frequência, acessibilidade, tarifa justa e competitiva com os outros modos de transporte. Corolário: todos querem fugir dos ônibus, que seja para um carrinho velho, caindo aos pedaços, ou uma motocicleta, mesmo que isso signifique riscos no trânsito. Com a redução de impostos e aumento da oferta de crédito, o governo dá mais um empurrão para a solução individual de transporte nesse “salve-se que puder”.

O Governo Federal errou em cheio. Primeiro porque dá um tiro no próprio pé. Ele abrirá mão de uma soma considerável de impostos, segundo apurou o Correio Braziliense, algo da ordem de 2,7 bilhões de reais. Obviamente as áreas de Saúde, Educação e Segurança, que não andam bem, poderiam se beneficiar com esses recursos.

Segundo porque impõe à sociedade um aumento de custos sociais, econômicos e ambientais decorrentes da mobilidade que poderiam ser evitados. Os itens da fatura virão em forma de poluição, congestionamentos, desastres de trânsito e a consequente conta no hospital, demanda por mais viadutos, estacionamentos, sinalização, alargamento de ruas e avenidas. As já escassas áreas verdes terão de dar passagem aos novos carros, senhores do espaço público. Os pedestres ficarão ainda mais espremidos nas calçadas e para atravessar uma rua terão de enfrentar uma frota de veículos mais densa, mais compacta e ainda mais agressiva.

Em terceiro lugar, quem vai pagar pelo equívoco do governo será a “nova classe média”. Parece que ela será a vítima preferencial, que por ter o privilégio de escapar dos ônibus superlotados, inseguros, caros e sem pontualidade, trocará o aperto da viagem pelo aperto financeiro. O carro custará o financiamento do banco, o IPVA, o seguro obrigatório, a gasolina, a troca de óleo, as manutenções. Breve o novo cidadão motorizado descobrirá que excedeu a velocidade em algum momento ou estacionou em local proibido. O valor da multa será uma punhalada no orçamento familiar. Silenciosamente, os pneus custam cerca de três míseros centavos por quilômetro, mas chegará o dia de pagar a conta. E acumulada. Nesse momento ele entenderá o que significa depreciação: o valor do seu carro não é mais o mesmo e a diferença ele deverá contabilizar como prejuízo. Como a sua excelência automóvel não aceita dormir na rua, reivindicará o maior quarto da casa, e com um nome especial: garagem. Provavelmente esse brasileiro ainda não fez as contas, mas gastará cerca de mil reais por mês com a mobilidade, cinco vezes mais que antes. Ou seja, o governo, que deveria investir em transporte público para a população, transferiu a conta para o bolso do cidadão.

Por ser um veículo não poluente, barato, eficiente, que não ameaça os outros e ainda melhora a saúde de quem o utiliza, dos 18 bilhões de reais que serão liberados pelo BNDES para a “mobilidade”, a bicicleta receberá um gigantesco nada. Ao lado dos pedestres, os ciclistas continuarão acuados em um espaço cada vez mais exíguo. Quem anda a pé, de bicicleta ou transporte público no Brasil não merece investimentos, consideração nem respeito.

Em resumo, as novas medidas de incentivo à compra de carros representam perdas para o governo, para a sociedade e para o cidadão. Porém, sabemos todos, que onde há perdedores, há ganhadores. As montadoras que venderão os carros estão felizes e os bancos quer farão os financiamentos mais ainda. E torcem para a deterioração do já o precário sistema de transporte público. É a turma do quanto pior, melhor. Agora com patrocínio governamental.

 

 

Nada a comemorar

O Detran do Distrito Federal anunciou as estatísticas do trânsito de 2013 como uma vitória. É o menor número de mortes desde 1995. Houve 375 mortes em desastres de trânsito em 2013, contra 417 em 2012. O diretor-geral do órgão disse que “estamos comemorando as vidas salvas no ano passado em relação a 2012”. Segundo a lógica desse raciocínio, foram salvas 42 vidas em 2013.

Porém, há um problema nessa forma de pensar. De outro ângulo teremos uma visão diferente. Na verdade foram 375 vidas perdidas. Partir de um patamar extremamente elevado e chamar qualquer redução de “vidas salvas” é inaceitável. O opróbrio foi apenas um pouco menor.

Sob qualquer ângulo que se avalie a mortandade no trânsito do Distrito Federal, a situação é ruim. Nos últimos 17 anos o número de mortes varia em torno de 440 e não existe qualquer movimento consistente de queda. Nem mesmo a recente redução das mortes. Atribuir a diminuição ao “arrocho na fiscalização, melhoria da sinalização e às multas mais pesadas da Lei Seca”, como fez o diretor do Detran, não passa de uma especulação simplória. Quantos motoristas beberam e dirigiram em 2012? E em 2013? Entre as vítimas, quantos tinham alcoolemia positiva nesses anos? Qual foi o impacto efetivo que teve a fiscalização em 2013? Quantos mudaram o comportamento depois do aumento do valor das multas? Mais: qual o impacto das ações dos órgãos de trânsito sobre a mortalidade em 2013? O Detran não tem resposta para nenhuma dessas questões. Apenas contou as vítimas.

Quando colocamos os dados do Distrito Federal em perspectiva, nossa situação fica ainda mais vergonhosa. Parece uma calamidade. Para citar apenas um exemplo, para chegar ao nível da Espanha, teríamos de reduzir 85% das mortes no trânsito.

O preocupante é que nada é feito para melhorar de forma duradoura o cenário. O Detran parece agir às cegas. Há algum programa de redução dos desastres de trânsito? Onde estão as pesquisas? Quantos laudos periciais foram estudados e utilizados para combater a violência viária? Quais os fatores mais frequentes na ocorrência desses eventos? Há algum estudo sobre os motociclistas? Há recursos, mas onde estão os milhões arrecadados com multas e que deveriam ir para segurança e educação de trânsito? Alguém viu alguma campanha do Detran promovendo comportamentos seguros no trânsito?

Precisamos mudar nossa forma de pensar e de agir. Os “acidentes de trânsito” não são frutos do acaso. Os acidentes não são acidentais. Existem fatores que precisam ser identificados e controlados para reduzir esses eventos.

É possível ter um trânsito seguro. Falta-nos ousadia para estabelecer objetivos ambiciosos. Falta-nos sonhos, como aquele do Coronel Renato Azevedo quando apresentou o programa de implantação do respeito à faixa de pedestres. Era impensável na época. Ainda vigia o antigo Código Nacional de Trânsito, de 1966. Como alguém poderia propor que os carros parassem para o pedestre passar? Não foram poucas as reações. Muita gente o chamou de louco, de irresponsável. “Em que país ele acha que estamos?”, “vai ser um morticínio!”, eram avaliações correntes. Por outro lado, Azevedo teve o apoio de pessoas que acreditaram que seria possível. Teve Luis Miura como parceiro. Os jornalistas Ismar Cardona, do Correio Braziliense, e Alexandre Garcia abraçaram o sonho. No primeiro ano do programa, o número de pedestres mortos no trânsito foi 40% menor. Foi um exemplo para o Brasil. Hoje, a faixa é um patrimônio de Brasília.

Poderíamos implantar aqui programas que deram certo alhures. O “Visão Zero”, por exemplo, é um programa de ações instituído na Suécia em 1997 que pretende zerar as mortes e os feridos graves no trânsito. Parte do princípio que as pessoas cometem erros no trânsito e é responsabilidade de todos, governo e comunidade, construir formas para reduzir suas consequências. Os resultados por lá são alvissareiros. Depois da implantação do programa, o país reduziu pela metade o número de mortes no trânsito, que já era exemplo para o mundo. E a evolução continua.

É possível diminuir consistentemente o número de mortos e de feridos. Não é apropriado festejar uma pequena melhora quando a situação permanece grave. Comemorar esses números indecentes é uma negligência com a gravidade da tragédia, e, sobretudo, é um desrespeito às famílias enlutadas. Não há o que comemorar.

Desastres no Trânsito

Preocupado com índices econômicos, superávit primário, taxas de juros e metas de inflação, que garantem nossa ascensão à sexta economia do mundo, o governo brasileiro parece não se dar conta da tragédia que impera nas nossas ruas. Como só viaja de avião, a burocracia estatal é incapaz de compreender a tragédia das estradas, pontilhadas por cruzes, e se restringe a apresentar a contabilidade fúnebre após as festas de fim de ano, carnaval e feriados prolongados, como se isso ajudasse ou confortasse as famílias das vítimas. O governo atribui a ocorrência dos desastres apenas à irresponsabilidade dos motoristas, e se limita a aumentar o infortúnio no inventário nefasto. Convenientemente desconsidera sua responsabilidade na habilitação de motoristas, no estado precário das estradas e na fiscalização do trânsito. Submetido à barganha política de quinta categoria, o órgão nacional de trânsito, o Denatran, tem na inépcia sua expressão máxima. O corolário do descaso não poderia ser outro: em 2010 batemos o recorde de mortes no trânsito e em 2011 superaremos essa marca sem qualquer dificuldade.

“O mais escandaloso do escândalo é que nos acostumamos a ele”. – Simone Beauvoir

Acreditando na metamorfose da tragédia em estatística, governo e sociedade parecem se unir em torno do lema do ditador soviético Joseph Stálin que “a morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística”. Essa parece ser a única explicação plausível para não nos darmos conta de que nos últimos trinta anos um milhão de pessoas morreram no nosso trânsito e 20 milhões ficaram feridas. Nesse período, cinco milhões de brasileiros foram para cadeiras de rodas ou ficaram com lesões irreversíveis. Por incrível que possa parecer, o custo de um trilhão de reais dos desastres de trânsito não está contabilizado nos índices econômicos.

Países desenvolvidos tratam o trânsito com seriedade. Em 1966, o presidente Lyndon Johnson foi alertado sobre a mortandade no trânsito do seu país. “Mais de 1.500.000 de nossos cidadãos morreram em nossas ruas e estradas neste século; cerca de três vezes o número de americanos que perdemos em todas as nossas guerras”, disse ao assinar o “Plano de Segurança no Trânsito”. Em 2010, os Estados Unidos tiveram o menor número de mortos no trânsito desde 1949. A Bélgica, outro exemplo, multiplicou por dez sua frota de veículos automotores nos últimos 60 anos, mas em 2010 teve o menor número de vítimas de trânsito de sua história. Esses países fazem diagnósticos dos problemas, realizam pesquisas em profundidade, estabelecem metas e promovem ações para reduzir a violência no trânsito. Os programas desses governos são robustos, há comprometimento das autoridades e efetiva participação da sociedade.

No Brasil, temos um longo caminho a percorrer. Em muitos aspectos parece que estamos na idade da pedra. Nossas estatísticas de trânsito deixam muito a desejar. Relegadas a um plano secundário, as perícias, essenciais para estabelecer medidas preventivas, são feitas à matroca. Sem perícias criteriosas as demandas judiciais dos desastres de trânsito não prosperam. A Justiça, de outra parte, tem mostrado excessiva benevolência com os motoristas infratores, promovendo a terrível impunidade, que anda de mãos dadas com a irresponsabilidade e o risco. Construídas com tecnologia dos anos 1950, nossas estradas são perigosas, incompatíveis com os tempos atuais. Quando se modernizam para os carros, nossas cidades espremem pedestres e ciclistas entre o muro e a morte. Milhões são gastos em viadutos enquanto passagens para pedestres, calçadas e ciclovias enfrentam a intransponível má vontade burocrática. Mal equipados e sem treinamento, os agentes de trânsito não conseguem conferir à fiscalização uma eficiência mínima. Para completar a patogenia, boa parte dos nossos veículos circulam sem manutenção à espera de mais vítimas.

É preciso dar um basta! Todos os dias milhares de brasileiros são feridos ou tem a vida precocemente interrompida por desastres de trânsito. Não podemos mais esperar. Medidas como uso do cinto de segurança, controle de velocidade em áreas urbanas, aperfeiçoamento da fiscalização, inspeção de segurança dos veículos, educação de trânsito para pedestres e ciclistas, que demandam poucos recursos e tem grande impacto na redução do número de vítimas, podem ser o começo da virada.

Temos que encarar essa empreitada. Chega de contar mortos e transformá-los em estatísticas, para tentar esmaecer a face cruel do nosso trânsito. Os belos índices econômicos não conseguem camuflar a procissão de cadáveres e mutilados nas ruas, ou estancar o choro das famílias enlutadas. Chega de inação, de indiferença, de insensibilidade. Basta!