Desastre no Espírito Santo

Na Universidade de Brasília leciono a disciplina “Epidemiologia dos Acidentes de Trânsito”. Com uma abordagem introdutória, busco ensinar aos alunos princípios para um trânsito seguro, reconhecimento de fatores de risco, programas de segurança viária e, sobretudo, impactos do trânsito na saúde e na qualidade de vida das pessoas. Ao longo do curso há um permanente exercício de pesquisar “por que os acidentes acontecem”. Para isso, dois conceitos são essenciais:

  • Fator – é qualquer circunstância que contribua para o resultado, sem o qual esse não poderia ter ocorrido. Cada fator é um elemento necessário para produzir um resultado, mas insuficiente isoladamente.
  • Causa – é a combinação simultânea e sequencial de fatores.

Dito de outra forma, geralmente a “causa” de um acidente não se resume a um só “motivo”. Há diversos fatores ou circunstâncias que interagem entre si para produzir um acidente. É essa combinação de fatores que chamamos “causa”.

Isso posto, vamos examinar o desastre – sim, não há outro nome para a tragédia! – que ocorreu na manhã do dia 22 de junho último no quilômetro 343 da BR-101, no Espírito Santo. Aos fatos.

O condutor Nadson Santos Silva, 30 anos, dirigia um caminhão com capacidade para 30 toneladas, aparentemente em más condições de conservação, sistema de freios alterado, pneus bastante usados, problemas mecânicos. Sua carga era uma rocha de granito pesando 41 toneladas, onze a mais do que seria a capacidade do veículo. A rodovia não é duplicada. Pelo horário do desastre – um pouco antes das 6h da manhã -, a insuficiência de luminosidade e visibilidade pode ter prejudicado a condução. A esposa de Nadson afirmou que ele estava há uma semana “trabalhando direto”, tomava arrebites para se manter acordado e que ele viajava preferencialmente à noite para evitar fiscalização. Em dado momento houve o tombamento da carreta e o caminhão com a rocha “atropelou” um ônibus e duas ambulâncias. Um incêndio tomou conta do cenário. Vinte e três pessoas morreram, há dez em estado grave nos hospitais do Estado.

Afinal, qual foi a “causa”?

Há duas etapas em um laudo pericial. A primeira estima como ocorreu o desastre, desenha a dinâmica do ocorrido. São as marcas no solo e no local, os amassamentos, as peças arremessadas e outras evidências que fornecem a trajetória dos veículos, suas velocidades, as forças envolvidas nos impactos. Numa segunda etapa estudam-se os “porquês”. As perícias buscam atribuir responsabilidades, encontrar culpados.

Em uma análise inicial e apenas com dados jornalísticos, é possível afirmar que uma combinação de fatores esteve presente na tragédia. Uma rodovia de tráfego intenso, com transporte de “carga pesada” em horários impróprios, sem fiscalização adequada (não há balanças funcionando no trecho) foram a base do cenário. O caminhão parecia ser um risco em si. Os pneus carecas podem não ter tido qualquer influência no desastre (o pavimento estava seco), mas revelam desleixo com a segurança. A sobrecarga, idem. O pobre Nadson trabalhava demais. Para ficar acordado recorria aos tais arrebites. Provavelmente ele não tinha a formação e a destreza necessárias para controlar um caminhão com uma rocha de mais de 40 toneladas em situações difíceis. Tampouco tinha preocupação em checar todas as condições mecânicas e de segurança do veículo. Provavelmente ele não tinha a noção dos riscos de perder o controle de um caminhão, como acabou acontecendo. Estava ali para ganhar o pão de cada dia. O dono do caminhão queria ganhar dinheiro e pagar as contas, assim como o dono da rocha. Esse negócio não deve ser lucrativo e eles têm de reduzir os custos. Ambos serão indiciados.

No ano passado foram mais de 125 mortos nessa rodovia, um a cada três dias. Este mês, outros 32 perderam a vida entre os dias 14 e 23 – três a cada dia. Não foi somente o Nadson. O problema é crônico.

Quantos caminhões transitam acima do peso? Quantos Nadsons trabalham virando noites e mais noites nas rodovias do Brasil enquanto a fiscalização dorme? Há centenas de milhares de motoristas caminhão despreparados no Brasil. Provavelmente a maioria não teria condições de controlar o caminhão que provocou a tragédia. Quantos trechos de rodovias deveriam ser urgentemente duplicados? Quantos órgãos de trânsito estão realmente preparados para identificar os fatores acidentógenos, estudá-los e exercer forte controle sobre eles? Temos muito a fazer.

O laudo do “acidente” sairá em 30 dias. Os ânimos estarão serenados, o véu do luto menos denso e aceitaremos a tragédia como sendo obra do destino.

Talvez não seja desta vez que descobriremos que os acidentes não são acidentais. Porém já passou da hora de mudar a repetição de desgraças. Chega dessa toada fúnebre que ronda as estradas brasileiras!

 

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